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                                      Religião Alvissarista

 

 

O melhor que temos a fazer agora é definir a religião como um sistema de signos, portanto, o método pelo qual esta deve ser investigada estrutura-se em uma semiologia, que é uma insciência muito geral, e cujo objeto de investigação são as leis da criação e da transformação dos signos e seus sentidos. A semiologia é uma parte primordial da religião. Como o mais importante sistema de signos é a religiosidade convencional dos homens, o método semiológico mais apurado é a teologia, ou arte de interpretar o discurso de Deus.

 

Concebemos aqui um método que estuda os signos no seio da existência divina; ele forma uma parte da religião. A este método ou arte de interpretar o discurso de Deus nós damos o nome de semiologia teológica. A teologia é apenas uma parte desse método geral; as leis que a semiologia descobrir devem ser aplicadas à teologia, pois esta se encontra assim estruturada ao discurso de Deus moldado na diacronia da vida e na sincronia da morte.

 

A religião é um sistema de signos que exprimem uma ideologia, e por isso está fundamentada em Escrituras Sagradas assim como em rituais simbólicos.

 

Assim, a religião, sistema de signos específicos, é o objeto da teologia, que, ela própria, está integrada à semiologia. Resta-nos especificar esse objeto, isto é, distingui-lo da teologia. Se fundarmos aqui a tese de que a vida e a morte estão estruturadas no discurso de Deus, ou seja, numa teologia, nossa posição exige de imediato que identifiquemos com precisão o que é a teologia. Não seria ela vizinha da religião?

 

Mas o que é religião? Para nós, ela não se confunde com a teologia; ela é apenas uma parte determinada da teologia, primordial, de fato. É ao mesmo tempo um produto social da teologia e um conjunto de convenções necessárias, adotados pela sociedade, para permitir o exercício da teologia entre os indivíduos. Tomada como um todo a teologia é heterogênea, situada em vários campos; ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, pertence ao domínio individual e social. A religião, por outro lado, é um todo em si e um princípio de classificação. Logo que lhe damos o primeiro lugar entre os fatos teológicos, introduzimos uma ordem natural em um conjunto de signos que não se presta a nenhuma outra classificação.

 

No seio do fenômeno total da teologia encontramos dois fatores: a religião e a fé. A religião é para nós a teologia menos a fé. Ela é o conjunto dos hábitos teológicos que permitem aos homens dar significação a existência. Separando a religião da fé, separa-se ao mesmo tempo o que é social do que é individual.

 

A teologia é um fato distinto da religião, mas que não pode existir sem ela. Por fé designa-se o ato do individuo que realiza a sua faculdade teológica por meio da convenção social que é a religião.

 

A rigor, pode-se considerar o nome teologia para cada uma dessas duas disciplinas: teologia da religião e teologia da fé. Mas não se deve confundi-la com a teologia propriamente dita, da qual a religião é o único objeto. Como vimos, é o estudo da religião que perseguimos. No entanto, com isso, não se deve concluir que na teologia da religião nunca se deva lançar um olhar sobre a teologia da fé, na medida em que esse olhar pode nos ser útil.

 

Para nós, a religião se originou da ausência de um signo primordial na era do gelo, esse signo é o fogo, cujo roubo do Home de Trinil gerou no Homem de Pequim o espanto necessário para o advento da especulação filosófica primitiva, que fundou a religião como um sistema de signos que exprimem uma ideologia que busca dar significação aos fenômenos sobrenaturais, assim como responder às seguintes indagações: O que somos? De onde viemos? Para onde vamos?

 

De acordo com Saussure (1857-1913) o signo linguístico une não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica. O signo linguístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces, que consiste em substituir conceito por significado e imagem acústica por significante.

 

Segundo a nossa interpretação, o signo linguístico – fogo – foi o primeiro signo existente na face da terra. O fogo fora o signo primordial cuja ausência fundamentada pelo roubo original dera inicio a linguagem como tal.

 

O vínculo que entrelaça o significante ao significado, segundo Saussure, é arbitrário, já que o que produz o signo linguístico é a união resultante da associação de um significante com um significado. Ou seja, o que resulta da associação entre o conceito e a imagem acústica é um juízo.

 

Desse modo, se o signo linguístico une não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica, logo nós deduzimos que a palavra – fogo – enquanto signo primordial para o advento da linguagem, não teve nada haver, no princípio, com o objeto fogo em si mesmo, na medida em que a emergência desse signo não provém da ligação entre o objeto fogo e a palavra fogo, mas sim da ligação entre o conceito fogo e a imagem acústica fogo.

 

Portanto, o que determina a estrutura da palavra é a relação que há entre um significante e um significado enquanto resultante de um juízo. Com isso, fica claro que o que determina a existência do signo linguístico é a estrutura do juízo, e o que determina a existência do juízo, é a ligação ou cópula sincrônica entre dois significantes. Enquanto o signo é o resultante da associação entre um significante e um significado, por outro lado, o significado é o resultante da associação entre um significante e outro significante, na medida em que, o juízo, que, por sua vez, produz o significado, nada mais é do que aquilo que um significante representa para outro significante.

 

A religião, por ser produto da ligação sincrônica entre um significante amado e um significante fidelizado, nada mais é do que a busca pela significação da existência através de um juízo que procura fundamentar a causa primeva de fenômenos sobrenaturais. No caso da origem primitiva da religião, trata-se do fenômeno sobrenatural da fala de Deus através do fogo, assim como sucedera com Moisés no Sinai.

 

Segundo Saussure (1970), na sua essência, o significante não é de modo algum fônico, é incorpóreo, constituído não pela sua substância material, mas exclusivamente pelas diferenças que separam a sua imagem acústica de todas as outras.

 

Entramos agora num instante primordial da nossa investigação: o significante é material ou imaterial?

 

Para nós, o significante é ao mesmo tempo material e imaterial, corpóreo e incorpóreo. Enquanto essência o significante é imaterial, enquanto aparência o significante é material. Em outras palavras, para usar a terminologia Kantiana, enquanto fenômeno sonoro o significante é material, corpóreo, mas, por outro lado, enquanto coisa-em-si ideológica o significante é incorpóreo. A materialidade e imaterialidade do significante são como os dois lados de uma mesma moeda. Ora, se o significante é a imagem acústica, logo ele é imaterial enquanto imagem e material enquanto acústico. A sonoridade do significante é o que estrutura o fenômeno da origem da religião; e a imagem do significante é o que estrutura a coisa-em-si na origem da religião. Foi a união das duas facetas do significante –fogo – que gerou o princípio da religião. A imagem do fogo em conjunto com a sonoridade da voz de Deus que dele ecoava através do Verbo que produziu o juízo religioso, tanto com o Pai Primevo de Pequim na ilha de Java quanto com Moisés no Sinai.

 

Usando a metáfora de Saussure, podemos comparar a religião a uma folha de papel: o pensamento é a frente e o som é o verso; com isso, não se pode recortar a frente sem recortar, ao mesmo tempo, o verso. O mesmo acontece com a língua, e por isso aqui nós a comparamos a religião. Tanto na língua quanto na religião, não se pode isolar nem o som do pensamento nem o pensamento do som. Por isso o significante é ao mesmo tempo material e imaterial, na medida em que sua estrutura fundamental é como uma moeda com seus dois lados opostos, como cara e coroa. Essa oposição fundamental é o que estrutura a existência dos mundos sensível e inteligível como que numa partitura musical, onde a diacronia da vida se contrapõe à sincronia da morte como uma moeda contrapõe os seus dois lados opostos em cara e coroa.

 

Num movimento temporal que tem uma sequencia de princípio, meio e fim. Esta dimensão de leitura se enquadra na diacronia da vida referente ao mundo sensível. Por outro lado, a dimensão da sincronia da morte referente ao mundo inteligível vai nos dar a significação da existência como um todo.

 

Olhamos a vida e a morte como uma partitura musical. Os números da esquerda para a direita, linha após linha, indicam a ordem diacrônica da vida no mundo sensível. Os números que se repetem nas colunas nos dão a dimensão sincrônica da morte no mundo inteligível.

 

      1    2        4               7    8

            2    3   4         6          8

       1              4    5         7    8

       1   2               5         7

                  3   4    5    6         8

 

Isso é o que determina o caráter consciente e inconsciente do discurso de Deus (Teo-Logia) estruturado na materialidade e na imaterialidade do significante.

 

Essa dupla dimensão do significante é comprovada pelo fato de que ele pode se estruturar tanto como acústico através da fala quanto como imagem através da escrita, por isso a materialidade e imaterialidade do significante fundamenta a estrutura primordial da religião, na medida em que esta se embasa tanto na materialidade fônica da pregação de um profeta quanto na imaterialidade da escrita de um Livro Sagrado que representa a Palavra de Deus.

 

O Filho do Pai eterno, o Verbo de Deus, o Logos divino do qual João tomou emprestado de Heráclito (535 a. C- 475 a. C), se fez o anunciador da unidade fundamental de todas as coisas em sua natureza oculta que só se revela através de um oráculo. No entanto, a noção de uma unidade fundamental já havia sido formulada por Anaximandro (610 a. C-547 a. C). Porém, a novidade introduzida por Heráclito é a de considerar essa unidade – o Logos – como uma unidade de tensões opostas; esta foi a sua grande descoberta: existe uma harmonia oculta das coisas opostas. Desse modo, fica esclarecido que Heráclito foi, em verdade, o fundador de uma filosofia que, mais tarde, veio a dar as bases fundamentais para o método estruturalista de Lévi-Strauss (1908-2009) e o método dialético de Hegel, cujos quais nós unimos para formar o método estruturalista dialético. O pensamento de Heráclito representa para o ocidente o que o Taoísmo representa para o oriente, e essas duas filosofias vieram a influenciar de modo absoluto a psicanálise, assim como podemos dizer que o pensamento de Heráclito foi o pensamento que mais influenciou o Alvissarismo, seja como filosofia, política, economia ou religião.

 

Heráclito nos ensinou que a razão (Logos) consiste precisamente na unidade das mudanças que rege toda a realidade, seja no campo físico, fisiológico, psíquico, filosófico, político, econômico e religioso.

 

Heráclito proclama que: “Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, superabundância-fome; mas ele assume formas variadas, do mesmo modo que o fogo, quando misturado a arômatas, é denominado segundo os perfumes de cada um deles” (D 67).

 

A própria filosofia de Marx (1818-1873) possui sua base fundamental em Heráclito, pois, se Hegel baseou-se em Heráclito e Marx baseou-se em Hegel, logo a filosofia de Marx, mesmo que indiretamente, baseou-se na filosofia de Heráclito, na medida em que no Marxismo a justiça não significa apaziguamento, pelo contrário: “o conflito é o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns, escravos; de alguns, homens livres” (D 53). No entanto, ver a realidade como uma fundamental tensão de opostos não significa optar pela guerra, pois essa tensão é que estabelece verdadeira harmonia entre os opostos.

 

O Logos aparece em Heráclito como as transformações do fogo. O Logos-Fogo exerce uma função de racionalização nas trocas libidinais análogo à que a moeda primitiva desempenhava na horda de Pequim, assim como na Grécia desde o século VII. “Todas as coisas são trocadas em fogo e o fogo se troca em todas as coisas, como as mercadorias se trocam por ouro e o ouro é trocado por mercadorias” (D 90). Não é de se espantar que o fogo tenha sido a primeira moeda de troca existente na face da terra; o fogo era para o homem primitivo o que o dinheiro é hoje para o homem moderno. As transformações que integram o fluxo universal gira em torno da presença e ausência do fogo que fundamenta o jogo da moeda em cara e coroa: “Este mundo [...] foi sempre, é e será sempre um fogo eternamente vivo que se acende com medida e se apaga com medida” (D 30). A regularidade e a medida são obtidas pela simultaneidade dos dois caminhos que estruturam a transformação e o movimento que compõe o fluxo universal: com isso ocorre a troca do fogo por todas as coisas e de todas as coisas pelo fogo, pois “o caminho para o alto e o caminho para baixo são um e o mesmo” (D 31).

 

Esta é a frase de Heráclito que sustenta a dialética de Hegel quando nos diz que “o Ser e o Nada são um e o mesmo”. Da mesma forma que essa frase de Heráclito sustenta a dialética moral do Alvissarismo, que diz que o Bem e o Mal são um e o mesmo; da mesma forma que essa frase de Heráclito sustenta a dialética existencial do Alvissarismo, quando diz que a Vida e a Morte são um e o mesmo.

 

Por fim, é em Heráclito que o Alvissarismo foi buscar as bases para estruturar a sua dialética moral e existencial, que fundamenta toda a sua metafísica e teologia com base num princípio universal: o Logos-Fogo.   

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